Escolas... O que esperamos delas e como elas nos respondem?

"Nossas escolas são construídas segundo o modelo das linhas de montagem. Escolas são fábricas organizadas para a produção de unidades bio-psicológicas móveis portadoras de conhecimentos e habilidades. Esses conhecimentos e habilidades são definidos exteriormente por agências governamentais a que se conferiu autoridade para isso. Os modelos estabelecidos por tais agências são obrigatórios, e têm a força de leis. Unidades bio-psicológicas móveis que, ao final do processo, não estejam de acordo com tais modelos são descartadas. É a sua igualdade que atesta a qualidade do processo...

As linhas de montagem denominadas escolas se organizam segundo coordenadas espaciais e temporais. As coordenadas espaciais se denominam "salas de aula". As coordenadas temporais se denominam "anos" ou "séries". Dentro dessas unidades espaço-tempo os professores realizam o processo técnico-científico de acrescentar sobre os alunos os saberes-habilidades que, juntos, irão compor o objeto final. Depois de passar por esse processo de acréscimos sucessivos - à semelhança do que acontece com os "objetos originais" na linha de montagem da fábrica - o objeto original que entrou na linha de montagem chamada escola ( naquele momento ele chamava "criança") perdeu totalmente a visibilidade e se revela, então, como um simples suporte para os saberes-habilidades que a ele foram acrescentados durante o processo."

Rubem Alves

A escola com que sempre sonhei sem imaginar que pudesse existir
Papirus Editora, Campinas, SP, 2001 e Edições Asa, Porto, 2001

O trecho acima recortado do texto do Rubem Alves pode até parecer uma reflexão revolucionária e inovadora, se não tivesse sido escrita há 14 anos (eu não errei as contas, é que ele escreveu originalmente algumas crônicas no ano de 2000, que mais tarde foram reunidas e publicadas no livro citado)...Tudo bem, 14 anos é relativamente pouco tempo quando nos referimos a ideias que se propõem a abalar paradigmas sociais consolidados há algumas centenas de anos. Talvez eu esteja "contaminado" com a velocidade com que as coisas mudam na era da internet, mantendo uma expectativa utópica de que podemos/devemos dar saltos evolutivos mais ousados num menor espaço de tempo, mas tenho um sentimento de revolta quando penso e vivo algumas situações que se reproduzem de modo tão automático em nosso cotidiano e acabam por se estabelecer como "normais"...

Nesses últimos dias, meu filho estava sofrendo com a dificuldade para memorizar alguns conteúdos que seriam exigidos para um exame da sua escola, e eu tentava ajudá-lo nesse processo:

- Vamos filho, o símbolo do café na bandeira representaaaaaaaa...
- Éeeeeeee... Não lembro!
- A agricultura filho...
- Hum...

E, como num "insight", resolvi arriscar...

- E você sabe o que é agricultura, agricultor?
- Eu não...
- Você sabe de onde vem o café que nós tomamos?
- (após alguns segundos de boa concentração)... Do mercado?
- Não filho... Para que nós tomemos o café, uma pessoa chamada de "agricultor", plantou a semente para crescer os grãos, depois colheu, tratou e por último vendeu para o mercado...
- Ahhhh... Mas papai, o café não é feito de pó?

Fiquei imaginando o potencial que essa conversa tinha para produzir uma aprendizagem que daria sentido a aquele amontoado de palavras que ele teria que memorizar. Entretanto, não havia mais tempo... A "prova" seria dali a algumas horas e ele estava cansado e emocionalmente desgastado de tanto tentar memorizar aquelas coisas "chatas". Fiquei refletindo: "prova" de que? O que esse exame vai "provar"? Talvez prove o quão capaz ele é de memorizar alguns conteúdos que alguém disse que ele teria que reproduzir. Tudo bem, você pode dizer que é importante que ele se aproxime desse conteúdo por alguma razão (talvez seja útil para o "mercado de trabalho"), mas tem que ser desse jeito?

No mínimo, penso que nossas escolas precisam se reestruturar na perspectiva da promoção de uma aprendizagem mais divertida, criativa, problematizadora, que desperte inicialmente a curiosidade sobre "as coisas do mundo" e que, progressivamente, estimule aquilo que o Paulo Freire chama de curiosidade epistemológica (Pedagogia da Autonomia: Saberes Necessários à Prática Educativa - Editora Paz e Terra, 2ª impressão, 43ª edição, 2011).

Sei que o Paulo Freire foi um dos ícones do campo do conhecimento da educação para adultos, e também tenho consciência que há importantes diferenças entre a pedagogia e a andragogia. Mas minha intenção aqui não é discorrer sobre as teorias de aprendizagem ou sobre metodologias de ensino seja para crianças ou adultos, mas sim o de chamar a atenção para a urgente necessidade de mudarmos nossa expectativa sobre a escola. Sim, porque as escolas "respondem" a uma necessidade social, a qual foi pautada pelos paradigmas do modo de organização capitalista, a partir da institucionalização da indústria como locus privilegiado da produção de coisas.

Ressalto também que não estou fazendo defesa de algum modelo de organização econômico-social, mas apenas refletindo sobre as possíveis origens desse jeito de produzir arranjos educacionais. Então, dando continuidade ao raciocínio, pergunto: quem garante que passando por esse modelo escolar vigente estaremos aptos a lidar com os problemas da vida? Ou mesmo para encontrar um lugar no "mercado de trabalho". Tenho incontáveis exemplos que se prestam a tensionar a resposta dessa questão de modo desfavorável a esses arranjos, mas citarei apenas um.

Daniel é um grande amigo. Na verdade, tenho o privilégio de tê-lo como amigo porque ele é um desses que chamamos de "gênio", com uma capacidade cognitiva diferenciada da maioria. Admirei primeiramente sua habilidade de, com maestria, tocar piano e teclado. E, para minha primeira surpresa, ele não havia passado por qualquer escola de música. Assim como a história registra com outros gênios da música, sua aprendizagem não esteve restrita a um ambiente denominado "escola". Em que pese minha admiração pelo seu talento musical, quero aqui frisar outro aspecto, pois a música para ele (como, infelizmente, para a maioria dos músicos de talento) tornou-se um hobby já que o "mercado" da música não tinha boas perspectivas.

Quero frisar um outro lado de sua história, o lado "profissional". Daniel também sempre demonstrou interesse pela tecnologia da informação, e por razões pessoais teve que trabalhar cedo, com uma dedicação integral de seu tempo a este trabalho. Tendo conseguido se inserir nesse mercado e, sem qualquer estudo em uma instituição formal, experimentou um desenvolvimento importante na sua carreira num pequeno espaço de tempo. Prestem atenção que eu escrevi "sem qualquer estudo em uma instituição formal", o que não quer dizer "sem estudo". Pelo contrário, ele sempre foi muito estudioso e o desenvolvimento de suas competências possui íntima relação com esse esforço.

Na minha percepção, os pontos fundamentais que foram os disparadores capazes de desencadear o desenvolvimento positivo das suas competências foram: 1) ter um afeto positivo com a área do conhecimento e 2) aproximar-se do conhecimento na medida em que a necessidade (imposta pela condição do trabalho) surgiu. É possível e bastante provável que outras variáveis tenham influenciado nesse desfecho, o que não impede que as duas citadas tenham alguma importância no processo. Nesse momento, para mim, são esses os pontos essenciais.

Você pode até dizer que é um discurso piegas essa coisa do "gostar do que faz", mas eu continuo achando que manter emoções positivas com o objeto de seu trabalho aumenta a probabilidade de que o indivíduo seja bom no que faz (devem existir evidências nesse sentido, e isso dá um bom objeto de estudo). Da mesma forma, penso que as escolas precisam tornar as suas atividades pedagógicas (que analogamente, se constituem como o trabalho do estudante) em objetos que proporcionem emoções positivas nos sujeitos que estão implicados com sua execução.

E, se minhas impressões estiverem corretas, as escolas teriam também que ser capazes de proporcionar oportunidades de aprendizado a partir de aproximações sucessivas do estudante com a realidade, e sempre que possível, engajando-o na resolução de problemas concretos. Tudo isso a partir de um planejamento educacional que, no espaço coletivo, proporcione o olhar para a singularidade, ou seja, capaz de respeitar as particularidades de cada estudante, seu ritmo de aprendizado, seus afetos e desafetos, seu contexto familiar e social...

Utopia? Talvez.. Tenho experimentado nos últimos anos (como estudante e como educador) um modelo educacional que aposta nessas premissas e cuja organização pedagógica prima por arranjos bem diferentes do tradicional (ou educação bancária, na linguagem Freiriana...). A experiência tem sido bem positiva, com vários depoimentos de estudantes e educadores sobre o amplo potencial de efetiva transformação positiva da realidade pessoal e profissional desses atores e também do alto nível de satisfação e prazer envolvido com a descoberta de um "novo" jeito de aprender. Essas últimas aspas são propositais porque essa discussão não é recente, o que aumenta aquele meu sentimento de revolta frisado no início desse texto.

Utopia ou não, as mudanças de arranjos educacionais só serão possíveis e ganharão uma escala significativa se e quando nós formos capazes de compreender o que de fato desejamos do papel da escola em nossos tempos. Tempos (estes sim) novos, que nos exigem novos comportamentos perante as discussões dos problemas reais da vida e do "mercado".

Curiosamente, são as mudanças nesse mercado, que é simultaneamente tão concreto e abstrato, que se constituem como o principal combustivel para alavancar nossas necessidades de mudança. Afinal, quantos com diploma na mão estão fora do mercado? Infelizmente, muitos. A alienante corrida do vestibular começa a ser questionada, seja porque o esforço (quase que doentio) engendrado para sua superação não é garantia de sucesso no mercado, seja porque tem levado muitos jovens à depressão ou à fuga pela imersão nas drogas ou, ainda, a se tornarem indivíduos competitivos ao extremo e incapazes de bem conviver e trabalhar em equipe.

Na medida em que mudamos (ou somos forçados a mudar pelo famoso e ambíguo "mercado"), tomamos mais consciência das necessidades de mudança também na escola, e passaremos a cobrar um novo padrão de "resposta" dessas instituições, o que resultará em novos arranjos organizacionais. Tomara que esse nosso despertar em massa ocorra no menor tempo possível, pelo bem dos nossos filhos e para proporcionar uma evolução social mais sustentável.

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