Mais um dia mundial da saúde...

Mais um dia mundial da saúde passou... E a saúde continua sendo a política pública de maior preocupação do povo brasileiro. Tenho ouvido muita gente falar sobre a qualidade dos serviços de saúde no Brasil, mais especificamente, tenho ouvido muita gente falar de modo negativo dos serviços do Sistema Único de Saúde (SUS). E com razão. Estamos muito distante do que desejamos, do que merecemos como contribuintes, como cidadãos... Entretanto, por mais que eu concorde com tais críticas, precisaremos enquanto sociedade ponderar como direcionar nossa energia para que as mudanças aconteçam. Salvo raras exceções, tenho visto muita energia sendo desperdiçada na promoção da crítica pela crítica, ou da crítica no jogo sujo da politicagem, ou, ainda e pior, da crítica na descrença e na desesperança.

O SUS é uma proposta de política de inclusão social de uma magnitude gigantesca, que se destinou, segundo a Constituição Federal de 1988, a garantir a saúde como um direito do cidadão brasileiro e um dever do Estado. Desde então, nós sanitaristas que acreditamos nessa proposta temos nos digladiado numa luta desigual e bastante injusta com vários adversários. E não são poucos, caso você não saiba. Vou descrever alguns deles. Primeiro, quero começar pelo chamado "sistema privado de saúde". Não tenho a intenção aqui de demonizar nada nem ninguém, e nem fazer uma discussão no campo político-ideológico, mas é forçoso reconhecer que já erramos como sociedade no começo de tudo, quando permitimos que, na Constituição Federal e de modo paralelo ao sistema ÚNICO de saúde, um OUTRO sistema nascesse e se desenvolvesse para tornar-se nosso maior adversário.

Mas, como não reconhecer isso? As evidências estão "às fuças"... Mas, nos limitemos a refletir sobre a natural concorrência da mão de obra, por exemplo. Afinal, quando um profissional de saúde é formado, para onde ele dirige sua energia? Para o SUS? Infelizmente, essa não é a realidade. E talvez até seja, para algumas das profissões de saúde cujo mercado privado já se tornou tão desfavorável que o SUS se tornou a única alternativa. Muitos (desses últimos) já procuram refúgio em outras formas de "ganhar o pão de cada dia", fazendo concursos para outros sistemas paralelos de saúde (como o do Judiciário, por exemplo), ou para outras áreas de atuação (auditor fazendário, analista da previdência, etc).

As poucas profissões de saúde que conseguiram se proteger dos "abusos" do mercado (leia-se, quase que exclusivamente, Medicina), resistem o quanto podem a entrar no SUS, alegando obviamente a falta de condições de trabalho e as remunerações bem abaixo da média do sistema privado. O que é verdade, por sinal. Mas, onde está o erro? É errado que o profissional procure "um lugar melhor ao sol"? Não penso que seja. Todos procuramos isso... O erro está na concepção. Não poderíamos ter permitido que o SUS fosse uma das possibilidades no mercado de profissões, mas sim a ÚNICA alternativa. Quem sabe, assim, já teríamos, por exemplo, um plano de cargos e carreiras de caráter nacional, que estabelecesse melhores condições para remuneração e crescimento profissional, ao invés de um programa que se destina a "guerrear" com uma categoria, como fomos forçados a fazer recentemente com o Programa Mais Médicos?

Eu até poderia explorar um pouco mais esse adversário tão potente, refletindo, por exemplo, sobre a força dos planos de saúde e como sua proliferação se estende de modo acentuado, ameaçando a sobrevivência do SUS pela falta de implicação e pela descrença de nosso povo com o sistema público. Mas, sinto-me obrigado a expandir um pouco mais essa discussão, afinal o sistema privado de saúde está muito longe de ser nosso único adversário, em que pese sua força no contexto atual. Precisamos colocar outros "atores" na roda. Vamos, então, refletir sobre o subfinanciamento. Ah, você ouviu o Alexandre Garcia dizer que não falta dinheiro no SUS, mas sim que falta uma boa gestão, né? Pois é, até acho que ele tem razão quando afirma que temos pouco profissionalismo na gestão do SUS, com gente despreparada para se responsabilizar com a administração do sistema, em seus variados níveis, com maior gravidade em nível municipal.

Entretanto, não dá pra fazer de conta que estamos "nadando em dinheiro" no SUS. Todos os estudos sérios conduzidos nos últimos anos sobre o financiamento do SUS apontam claramente que nossos sistema carece de muitos recursos para conseguir manter-se de modo sustentável, acompanhando o crescimento periódico dos custos da prestação de serviços de saúde. A situação crônica e persistente da falta de infra-estrutura das unidades de saúde e do abastecimento irregular e insuficiente de insumos, equipamentos e materiais é uma das evidências básicas da falta de financiamento do SUS. Não se faz saúde sem dinheiro para: 1) pagar os trabalhadores regularmente; 2) comprar materiais e medicamentos; 3) construir postos e outras unidades de saúde com ambientes adequados; 4) comprar equipamentos com tecnologia avançada... 

Mas, de onde vem esse subfinanciamento? Vem da inércia dos nossos representantes (em especial do poder legislativo) em definir a saúde pública como uma prioridade para a vida das pessoas. Isso implicaria em garantir uma maior parcela do orçamento federal para o financiamento da saúde (uma vez que a maior parte dos Estados e Municípios têm aplicado bastante dinheiro em saúde - quem tiver dúvida sobre isso pode buscar os estudos que tratam desse tema). Infelizmente, ao invés de estarem discutindo essa questão, vários dos nossos Deputados e Senadores têm se mostrado a favor de projetos de Lei que se destinam a aumentar a cobertura do sistema privado de saúde e à redução dos repasses automáticos do governo federal para Estados e Municípios, com valorização das chamadas "emendas parlamentares".

Temos ainda uma gama grande de adversários a serem explorados, mas ficarei com apenas mais um, que considero dos mais importantes: a baixa compreensão e implicação de nosso povo para com o modo de funcionamento do SUS. Pois é, esse é bem difícil de aceitar, né? Afinal, como cada um de nós pode ser responsabilizado por tudo isso? Defendo que, quando somos mais e melhor informados sobre as coisas, maior e mais qualificada é a nossa atuação em favor da cidadania e do fortalecimento das políticas públicas. Com o SUS não seria diferente.

Dessa forma, convido você à seguinte reflexão: quantas vezes você pensou, por exemplo, quando ocorreu de ser mal atendido num serviço do SUS, sobre a condições de financiamento daquela unidade de saúde? No mundo real, a primeira coisa que procuramos é o culpado por aquela baixa qualidade de atendimento... Daí nascem as críticas a que me refiro no começo desse texto. Mas, sua crítica tem qual finalidade? É a crítica pela crítica, ou seja, fazer por fazer e mostrar sua justa, porém, improdutiva insatisfação? Ou seria a crítica para promover o jogo sujo da politicagem, ou seja, você é candidato a alguma coisa, ou defende algum candidato que é de oposição a quem esteja governando? Ou, ainda, seria aquela que é a pior das críticas: a da descrença e da desesperança, que alimenta o discurso perigoso de que "nada nem ninguém presta" e que "as coisas nunca vão mudar no serviço público"?

Penso que sua crítica só será produtiva se estiver implicada no contexto de uma participação mais efetiva e consciente sobre a quem você deve direcionar sua energia. Isso irá requerer maior conhecimento sobre as coisas, sobre, por exemplo, a história das políticas públicas de saúde, o modo como o SUS está organizado, seu financiamento (fontes de receitas e principais despesas, etc). No mínimo, irá requerer, uma participação qualificada, baseada na construção de conhecimento e desvinculada dos seus interesses individuais, focada, sim, no interesse do coletivo.

Isso não é fácil de construir. Somos convidados, todos os dias, pelos órgãos de comunicação, imprensa e pelas redes sociais, a "encarar" o lado negativo do SUS... Pouco sabemos do seu lado positivo... Pois é, tem sim! Há anos a poliomielite está erradicada no Brasil, graças à dedicação de muitos profissionais que todos os dias estão atuando num simples ato de vacinar as nossas crianças. Reduzimos drasticamente a mortalidade infantil, graças às ações do SUS para prevenir doenças prevalentes da infância e no acompanhamento do crescimento e desenvolvimento das crianças. Realizamos milhares de transplantes a cada ano gratuitamente, além de milhões de sessões de hemodiálise para as vítimas das sequelados da hipertensão e diabetes. Distribuímos milhares de remédios que auxiliam no controle de várias doenças... Mantemos milhares de unidades e equipes de saúde espalhadas pelo país que são orientadas a trabalhar desde a educação em saúde até a prestar assistência de vários tipos de procedimentos.

O SUS é de uma enorme importância para o Brasil. Não podemos desistir dele, em que pese suas dificuldades. Não estou fazendo apologia à aceitação do que não está bom só porque o SUS tem boas intenções. Não se trata disso. Estou fazendo a defesa da sua melhoria progressiva, sem alimentar a ilusão de que isso será conquistado sem luta. Se queremos mais qualidade precisamos estar cientes de que há vários fatores que contribuem para que ocorra um atendimento de qualidade, em especial: 1) as adequadas condições de trabalho; 2) maior motivação do trabalhador da saúde (que passa pela sua estabilidade na carreira e por uma política remuneratória justa); 3) maior participação da comunidade na gestão do sistema.

Como você pode ajudar então? Não é simples, mas você pode apoiar os movimentos que lutam pela consolidação do SUS. Por exemplo, não conseguiremos unidades de saúde mais qualificadas (com materiais, medicamentos e equipamentos suficientes e com tecnologia adequada), se não nos dispusermos a discutir com quem quer que seja a questão do financiamento do SUS. Saiba, portanto, que precisaremos de muito mais dinheiro do que o SUS tem hoje. Nos ajude, portanto, nessa mobilização por mais recursos.

Teremos muita dificuldade de conseguir mais qualidade no atendimento dos trabalhadores se eles não se enxergam como integrantes do SUS, tendo que buscar alternativas com melhor remuneração e propostas de planejamento de carreira. Esteja engajado, portanto, nos movimentos que lutam pela formação adequada de profissionais para o SUS e pela fixação deles de forma digna. Essas são algumas das coisas que você, que deseja um SUS melhor e que não aceitará que o direito à saúde de qualidade seja retirado do nosso povo, pode fazer para apoiar no aumento progressivo da qualidade do nosso sistema público de saúde.

Não aceite a crítica pela crítica, não participe dos jogos sujos da politicagem e, sobretudo, não permita que lhe desacreditem do SUS com esses discursos de que "nada nem ninguém presta". O momento exige de nós mais dedicação e participação qualificada para que contiuemos avançando. Procure se informar, construir o conhecimento sobre a situação de saúde de sua cidade, participe das audiências públicas sobre o tema, busque compreensão sobre o financiamento do SUS... Acredite, por mais difícil que seja a situação atual, temos um sistema muito melhor do que há 30 anos... Devemos sempre considerar de onde partimos para fazer uma avaliação justa. Querer que tudo funcione de modo perfeito da noite para o dia é ilusão. Lute por mais avanços, para que a cada ano tenhamos um sistema um pouco melhor. Ainda temos muitas lutas pela frente, portanto, responsabilize-se você também!

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