A sociedade amedrontada (postado originalmente em 2006)

"Ter carro do ano, TV a cores, pagar imposto, ter pistolão; filhos na escola, férias na Europa, conta bancária, comprar feijão; ser responsável, cristão convicto, cidadão modelo, burguês padrão: você tem que passar no vestibular..."

Este trecho com que começo o blog, pertence à música (um clássico por sinal) da Legião Urbana, chamada "Química". Nela, um típico adolescente da sociedade capitalista desabafa sobre a enorme pressão com que tem que lidar no início de sua vida social. Digo início, porque é o primeiro momento que o adolescente "encara" a vida como ela é. Parece título de novela da globo...
É deprimente compreender que a sociedade em que vivemos encontra-se asfixiada pelo medo. Os indivíduos engrossam as estatísticas que retratam a análise da demanda aos consultórios psicológicos, especialmente para tratarem-se da "Síndrome do Pânico". E os motivos para tal se multiplicam: os telejornais apresentam notícias devastadoras, seja sobre as ondas de crime, seja sobre os desastres naturais, seja sobre os tristes números que denotam a desigualdade social. A vida social se apresenta como numa fábula de terror. Os vilões se multiplicam e parecem imbatíveis.
Uma análise rápida sobre o modo de vida na sociedade capitalista demonstra sinais claros sobre o porquê dessa predominância do medo. A inversão do modo de pensar a vida, ocorrida especialmente após o século XVII, e a rápida evolução do desenvolvimento da ciência e da tecnologia, produziram um homem livre da hipocrisia refinada escrita pela igreja, mas também sedento de retomar o "tempo perdido". Se antes ganhar dinheiro era pecado, dali para frente esse mesmo "ganhar" passou a ser sinônimo de sucesso e progresso. E, ainda, condição básica para ser alguém. Este grifo faz-se aqui necessário para o entendimento do primeiro pilar que construiu a sociedade do medo. Como na música, o verbo "ser" aqui está sendo usado no sentido de APARENTAR.
O homem aprendeu rapidamente que, na sociedade capitalista, alguns são necessariamente excluídos, ou na melhor das hipóteses, explorados. Aparentar é, portanto, fundamental para mostrar-se e, sobretudo, sentir-se igual às pessoas de sucesso. Vestir-se na moda (mesmo que não se sinta bem), consumir os objetos mais cobiçados (mesmo que não tenham qualquer utilidade), frequentar lugares desagradáveis, agir segundo convenções sociais, são exemplos de condutas do "aparentar". Mas, aparentar traz consequências bem claras para o ser. Ele penetra num ciclo vicioso bem complicado de sair. Um ciclo que o impulsiona a fingir mais e mais, escravizando-o no tormento de ter que aparentar para permitir-se viver em sociedade. Para ser mais claro, o homem-aparência é aquele que reflete condutas que os outros esperam dele. "Você precisa comprar a casa própria.... Você precisa comprar o seu próprio carro... Você precisa andar com fulano e cicrano, que são companhias decentes", etc. No incosciente, isso trabalha em forma de auto-cobranças fortíssimas, que chegam a desestruturar o ser que não se sente saciado pelas falsas necessidades impostas pelo aparentar. Como num vício qualquer, para saciar determinadas cobranças, doses maiores são cada dia mais necessárias. Daí, aquele determinado lugar ou pessoa que antes servia para saciar minha necessidade de aparentar sucesso, agora já não serve mais.
O outro pilar que sustenta nossa sociedade amedrontada é o ter, e por isso ele também está grifado na música do Renato Russo. O ter em questão deve ser entendido por POSSUIR. Obviamente, a sociedade capitalista, conforme foi magnificamente reportado por Karl Marx, afere os indivíduos pela razão do capital que possuem. Um ledo engano da maioria das pessoas é acreditar que o dinheiro é o capital. O verdadeiro capital é o poder. É que, na sociedade moderna e contemporânea, poder é quase sempre sinônimo de dinheiro. Independente desses conceitos, fica bastante claro que para ter o capital (a não ser que exista em abudância) o homem estará sempre competindo. A competição é muito saudável. Estimula o progresso, que por sua vez traz benefícios a todos. O problema é quando passamos a fazer qualquer coisa para vencer. Assim como no aparentar, um ciclo vicioso instaura-se na necessidade de possuir. Nossa psicoesfera de temor, já existente em face do vício do aparentar sucesso, é poluída pelo outro vício, o de possuir capital para sobrevivermos. Note-se que a aliança desses dois verbos tem um poder fantástico sobre nosso medo, somando-se seus efeitos e progredindo em escala geométrica para o pânico.
Alguém que leia este blog poderá achar de forma simplista que estou fazendo uma crítica socialista ao regime capitalista. Obviamente que um sistema que gera tanta desigualdade deve ser combatido. Mas a questão não é essa. É uma questão de reavaliação de valores. Nossos valores são frágeis porque são transitórios. A natural condução do pensamento niilista em nossa sociedade é que precisa ser repensada. Nosso medo está baseado em valores que herdamos de várias gerações. Valores estes que nos conduzem ao agir egoisticamente, amontoando capitais e aparentando força, em busca de estabilidade e felicidade.
Há dois mil anos Jesus deu-nos uma importante lição sobre valor, quando devolveu a César o que lhe pertencia. Demonstrou-nos que a estabilidade que buscamos não existe, porque tudo na Terra é transitório. E que a felicidade que ardentemente necessitamos está intimamente ligada ao equilíbrio e à paz de espírito, que nunca poderão ser proporcionadas nessa psicoesfera de temor que cultivamos. Não. Não é uma questão de modelo econômico; é sim uma questão sobre o que valorizamos e como agimos diante disso.
A música retrata que para ser um vencedor no mundo que valoriza a aparência e as posses, o jovem tem que passar no vestibular. Esses valores estão tão defasados e em xeque que nossos jovens cada dia mais mergulham no abismo do álcool e das drogas como mecanismo de fuga... O nosso desafio é construir uma sociedade mais justa e equilibrada, mas não através das revoluções sociais e econômicas (que na verdade só proporcionam a mudança de quem está no poder), mas através da revolução de valores, que criará uma psicoesfera de harmonia, justiça e amor.

Comentários

Postagens mais visitadas